sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SERMÃO SOBRE AMBIÇÃO


Jacques-Benigne Bossuet

“Jesus, sabendo que o povo viria arrebatá-lo, para o fazerem rei, tornou a retirar-se, ele só, para a montanha”. (Jo, 6, 15)

Reconheço Jesus Cristo nesta fuga generosa, que fê-lo buscar no deserto o asilo contra as honras que lhe preparavam. Quem acabava de se encher de opróbrios, devia evitar as grandezas humanas; a única exaltação que meu Salvador conhecia era aquela que o elevou na cruz; assim como se ofereceu a si ao decidirem o suplício, fugira, conforme seu espírito, ao lhe destinarem o trono.

A fuga súbita e inesperada de Jesus Cristo para a montanha deserta, onde queria se esconder tão complemente que, nota o evangelista, não havia ninguém em sua companhia, permite-nos vislumbrar a extraordinária pressão que sente; como fosse ele todo-poderoso, nada temendo por si mesmo, havemos de concluir, com certeza absoluta, Senhores, que é para nos admoestar.

Realmente, Cristãos, quando ele se agitou, diz Santo Agostinho, foi de indignação contra os pecados; quando se perturbou, afirma o mesmo Padre, foi de comoção pelos males; assim, quando temeu e fugiu, foi para admoestar dos perigos. Na sua presciência, ele vê em quantos perigos extremados nos arrisca o amor das grandezas: por isso, fugia diante deles para obrigar-nos a temê-los; demonstrando nesta fuga as terríveis tentações com que ameaçam as grandes fortunas, ensina-nos definitivamente que repreender a ambição é o dever essencial ao cristão. Não é empresa de pouca monta pregar tal verdade à corte, e devemos mais que nunca pedir a graça do Espírito Santo, pela intercessão da Santa Virgem: Ave.

O desejo de combater a ambição, que é a alma daqueles que a seguem, é como desertar a corte; e o empalidecer os presentes da fortuna, dos quais os príncipes são os dispensadores, é como rebaixar a majestade.

Mas os soberanos piedosos desejam apagar toda sua glória na presença daquela de Deus; e em vez de se ofenderem deste modo com a falsa diminuição de seu poder, tornam-se venerandíssimos, pois as gentes só os rebaixam, como bem sabem, se os comparam a Deus. Não tenhamos medo de publicar ferozmente na corte mais gloriosa do mundo que ela é incapaz de fazer qualquer coisa digna da estima dum cristão; desiludamos, se pudermos, os homens deste apego furioso ao que denominam fortuna; por isso, façamos duas coisas: façamos falar o Evangelho contra a fortuna, façamos falar a fortuna contra si mesma; o Evangelho nos desvelará suas ilusões, e ela por si revelará suas inconstâncias. Ou antes, vejamos um e outra na história do Filho de Deus. Enquanto acorriam para ele os povos, prometendo-lhe nada menos que um trono, ele desprezou de tal modo esta grandeza vã, que se desonrou a si e abateu seu triunfo com a companhia de tristes homens e miseráveis. Contudo, calcando aos pés a magnificência de seu esplendor, ele se quer exemplo da inconstância dos negócios humanos; no espaço de três dias, viu-se a fúria popular pregar na cruz aquele que o favor público julgara digno do trono. Daí, devemos aprender que a fortuna nada é; não somente quando tira, mas também quando dá, não somente quando muda, mas também quando fica, ela é sempre desprezível. Já começo, por favor, e vos peço, meus Senhores, de bem me escutar.


Primeiro Ponto

Neste primeiro ponto, quero demonstrar que a fortuna nos jugula, ao mesmo tempo em que nos é liberal. Poderia expor seus desenganos à plena luz, provando como de costume que ela nunca cumpre o prometido; mas demonstrar que não dá sequer o que finge dar é algo ainda mais forte. Seu regalo mais caro, mais precioso e mais raro é o poder. É o encanto dos ambiciosos, do qual são zelosos ao extremo, não importando quão diminuta seja a parte que lhes caiba.

Vejamos se ela verdadeiramente confere tal poder, ou se não passa dum nome altivo pelo qual embaça os olhos doentes. Para tanto, é preciso saber o poder que nos cabe, e de que poder temos necessidade, durante esta vida. Mas como se admira deveras a alma humana neste exame, tratemos de conduzi-lo pela via direita, através da doutrina de Santo Agostinho (Livro XIII, Sobre a Trindade).

Este grande homem expõe aqui uma verdade importante, de que a felicidade requer duas condições: poder o que se quer, e querer o que se deve. Assim deve ser, pois se não podeis o que quereis, vossa vontade não ficará satisfeita; também, se não quereis o que deveis, vossa vontade não será regrada; uma e outra impedem a bem-aventurança, pois a vontade descontente é pobre, e a vontade desregrada é doente, o que exclui necessariamente a felicidade, que é a ordem perfeita da natureza, e sobretudo a afluência universal do bem. Por isso, é igualmente necessário desejar o que se deve e poder executar o que se quer.

Acrescentemos, se quiserdes, o mais importante de tudo: a primeira vontade nos embaraça durante a execução, a segunda leva o mal consigo desde o princípio.

Quando não podeis o que quereis, é uma causa externa o que vos impediu; quando não quereis o que deveis, a decepção acontece infalivelmente por causa de vossa depravação: enquanto o primeiro não passa de infelicidade, o segundo é sempre falta; mas só porque é falta, invisível a seus olhos, que é incomparavelmente uma grande infelicidade? Assim, ninguém pode negar, sem passar por louco, que a vontade regrada é um bem mais necessário à felicidade do que um imenso poder.

É por isso, Cristãos, que me não espanto muito do desregramento das afeições e da corrupção dos julgamentos. Abandonamos a regra, diz Santo Agostinho, e suspiramos pelo poder.

Cegos, que empreendemos nós? A felicidade possui duas metades, mas cremos possuí-la inteira, não obstante façamos separação violenta das duas partes. Ainda rejeitamos a mais necessária, e a que escolhemos, porque separada daquela companhia, não nos torna felizes, mas aumenta o peso de nossa miséria. De que serve o poder para uma vontade desregrada que, desejando mal, torna-se ainda pior ao exercê-lo? Não dizíamos, no último domingo, que o grande crédito dos pecadores é uma praga que Deus envia a eles? Por quê? Porque, Cristãos, juntar o desejo ruim à sua execução é jogar veneno numa chaga já mortífera, é acrescentar ao que já era muito. Não é como incendiar o humor maligno cujo veneno corroía-nos as entranhas? Reconhece o Filho de Deus que Pilatos recebeu de cima um imenso poder sobre sua divina pessoa: se fosse regrada a vontade deste homem, poder-se-ia regozijar empregando tal poder para castigar a injustiça e a calúnia, ou pelo menos para livrar a inocência. Mas como a prudência covarde de conservar seu posto havia-o corrompido, tal poder serviu apenas para firmar seu pensamento no crime de deicídio. Por isso, é o cúmulo da cegueira desejar um poder que se voltará contra nós mesmos, que matará a alegria e será funesto à virtude, antes de a vontade estar bem ordenada.

Nosso imenso Deus, Senhores, nos dita outro proceder: quer ele conduzir-nos por vias retas, e não por precipícios. Eis porque ensina a seus servos a prática de querer o bem, e não desejar muito poder; a regrar os desejos, antes de buscar satisfazê-los; a buscar a felicidade por uma vontade bem ordenada, antes de consumi-la pelo poder absoluto.

Mas já é tempo, Cristãos, para que apliquemos mais particularmente essa doutrina de Santo Agostinho. Que pedis vós, ó mortais? Que Deus vos dê muito poder? Respondo eu com o Salvador: Não sabeis o que pedis. Vede bem onde estais; vede a mortalidade que vos consuma, contemplai a figura do mundo que passa.

Em meio a tanta fragilidade, sobre o que sustentais esta grande idéia de poder? Certamente, um título tão imponente deve se apoiar sobre algo: que encontrais sobre a terra que tenha força e dignidade o bastante para sustentar o título de “poder”? Abri os olhos, e penetrai a carapaça: sequer o maior poder do mundo consegue mais do que tirar a vida de um homem; é necessário então um tão grande esforço para matar um mortal, para lhe antecipar nalguns momentos o curso da vida que, por si só, se precipita? Não acrediteis, Cristãos, que alguém encontre o poder onde reine a mortalidade. Assim ordenou, acrescenta Santo Agostinho, a sábia providência: cabe aos homens mortais a observância da justiça; dar-se-lhes-á o poder na morada da imortalidade.

Que exigis de nós ainda? Se desejarmos o necessário na vida presente, poderemos tudo o que quisermos na vida futura.

Regremos a vontade pelo amor da justiça: no tempo propício, Deus nos coroará com a comunhão de seu poder. Se dedicarmos o momento da vida presente à correção dos costumes, dará ele a eternidade inteira para contentar os desejos.

Creio que agora vedes, Senhores, que sorte de poder devemos almejar durante esta vida: poder para regrar os costumes, para moderar as paixões, para nos corrigir segundo Deus; poder de nós contra nós mesmos. Ó poder pouco invejado! E todavia o verdadeiro. As gentes combatem nosso poder de duas formas: ou impedindo-nos de levar adiante as empresas, ou turbando-nos o direito que temos de levá-las adiante; esta última é a verdadeira servidão, pois se ataca a autoridade do comando. Vejamos os exemplos de um e outro dentro da mesma casa.

José era escravo em casa de Putifar, e a esposa deste senhor do Egito era a senhora desta casa. Aquele, durante o jugo da servidão, não era mestre de suas ações; e esta, tiranizada pelas paixões, não era mestre de suas vontades. Vede até onde a levou o amor infame. Ah!, sem dúvida, a menos que tivesse uma cara de madeira, teria ela vergonha de tal baixeza, mas a paixão furiosa lhe arrastava para baixo, como a um escravo.

Chama o jovem, confessa tua fraqueza, rebaixa-te diante dele, torna-te ridícula. Poderia seu mais cruel inimigo aconselhar algo pior?

Controla-a a paixão. Quem não vê, nesta mulher, que sua própria escravidão atou-lhe laços fortíssimos?

Cem tiranos de tal sorte cativam a vontade, e sequer suspiramos! Regozijamos quando nos ligam as mãos, e sem pena arrastamos esses ferros invisíveis em que estão acorrentados os corações!

Protestamos contra a violência, quando se encadeiam os ministros, os membros que executam; não suspiramos quando se cativa a rainha, a razão e a vontade que comandam!

Desperta, escravo miserável, e reconhece esta verdade: se há grande poder no executar os desejos, há um maior e mais verdadeiro no reinar sobre as vontades.

Quem soubera gozar da doçura deste império, pouco se dará, Cristãos, do crédito e do poder que a fortuna possibilita. E eis aqui o motivo: não existe obstáculo maior ao comando de si que o possuir autoridade sobre os outros.

Com efeito, em nós há certa malignidade que espalhou nos corações o princípio de todos os vícios. Estão escondidos e guardados em centenas de recantos tortuosos, esperando a ocasião de levantar a cabeça. Tirar-lhes o poder é a melhor maneira de reprimi-los. Compreendera bem Santo Agostinho que, para curar a vontade, é preciso reprimir seu poder: Mas, os vícios escondidos seriam por isso menos viciosos? É a consecução que fá-los corruptos? Por acaso, deixar o veneno guardado no fundo do coração é curar a vontade? Eis o segredo: entregamo-nos a vontades impossíveis, a planos sempre frustros, tendo do crime somente a malícia. A malícia frustrada, por isso, começa a causar anojo; sua impotência leva-nos a querer e repulsar os seus favores; deste modo, toma-se mais facilmente o partido da moderação dos desejos. Primeiramente, fazemo-lo por necessidade; mas enfim, como o constrangimento é importuno, combatemo-lo seriamente e de boa-fé, bendizendo seu poderio ínfimo – eis a primeira providência em direção à cura.

Pelo contrário, quem não sabe que quanto mais independente se torna uma pessoa, mais os vícios são indomáveis? Somos crianças que precisam dum tutor severo, ou a dificuldade ou o temor. Se não erigimos barreiras, as inclinações corruptas começam a se manifestar e aumentar, oprimindo a liberdade sob o jugo da licenciosidade desenfreada. Ah!, vemos demais disso todos os dias.

Assim vede, Senhores, quanto a fortuna é enganosa, porque, em vez de conferir o poder, tira-nos até a Liberdade.

Não é por acaso, Senhores, que o Filho de Deus ensina-nos a temer os grandes efeitos; o poder é princípio ordinário de extravio: exercendo-o nos outros, freqüentemente perdemos a nós mesmos; enfim, o poder é semelhante ao vinho perfumado, que embriaga até os mais sóbrios. O que souber refrear a ambição será mestre de suas vontades, e acreditar-se-á suficientemente poderoso, à condição que possa regrar os desejos, e se desengane dos negócios humanos, para não mensurar a felicidade pela elevação de sua fortuna.

Escutemos, Cristãos, o que nos opõem os ambiciosos. É forçoso, dizem eles, distinguir-se: permanecer no usual é sinal de fraqueza, os gênios extraordinários sempre se desgarram da tropa, e conduzem o destino. Os exemplos dos que avançam parecem reprovar aos demais o pouco mérito, e é o desejo de distinguir-se que leva a ambição aos maiores excessos. Poderia eu combater, com muitos argumentos, a idéia de distinção. Poder-vos-ia representar este século como confuso, e afirmar que tudo está trocado, e que há de vir o dia derradeiro, no final dos séculos, para apartar os bons dos maus; e que a ambição cristã se deve inspirar neste discernimento claro e eterno. Poderia acrescentar ainda que é vão o esforço de se distinguir nesta terra, onde a morte logo vêm-nos arrancar dos lugares eminentes, abismando-nos a todos naquele lugar comum à natureza, o nada; desta forma, os mais fracos, rindo de vossa pompa fugaz e de vosso discernimento imaginário, dirão junto com o Profeta: ó homem poderoso e soberbo, que pensais que, por causa da grandeza, estais isento do jogo, eis aí vós ferido como nós, vós que sois semelhante a nós.

Mas sem me prender a tais argumentos, limitar-me-ei a perguntar a essas almas ambiciosas por que caminhos pretendem se distinguir. O do vício é vergonhoso; o da virtude, longo. De ordinário, a virtude não é muito ardilosa para conquistar o favor dos homens; e o vício, sempre preparado para a obra, é mais ativo, mais instante, mais pronto que a virtude, que não se desvia das regras, que só caminha a passos contados, que só progride com medida. Desta feita, estareis entediados de tamanha lentidão; a pouco e pouco, vossa virtude fraquejará, e após ela abandonará aquela regularidade primitiva, acomodando-se aos humores do mundo. Ah!, como seria sábio se renunciásseis duma vez por todas a ambição! Talvez ainda ela vos causasse alguma pequena aflição, mas sempre a compraríeis pelo preço justo, sendo-vos mais fácil suportá-la agora, que quando vos abandonáveis às delícias das honrarias e dignidades. Vivei contentes do que sois, e sobretudo que o desejo de obrar o bem não vos faça almejar uma condição mais subida.

Eis o incentivo ordinário dos ambiciosos: imploram sempre por platéia, erigem-se como reformadores contra os abusos, tornam-se severos censores de todos quantos vêem ocupar lugares eminentes. Para eles, sempre são belos os planos que meditam! Quantos conselhos sábios para o Estado! Quantos sentimentos nobres para a Igreja! Quantos regulamentos santos para a diocese! Em meio a tais desejos caritativos e pensamentos cristãos, dedicam-se ao amor do mundo, absorvendo insensivelmente o espírito do século; e finalmente, ao atingirem a meta, vão esperar pelas oportunidades, que marcham a passos de chumbo, e que enfim nunca chegam. Assim fenecem todos os bons desejos, evaporam como um sonho os excelsos pensamentos.

Em conseqüência, Cristãos, sem suspirar nem arder por um poder mais elevado, diligenciemos a dar boa conta do poder que Deus nos confia. Um rio, para fazer o bem, não precisa transbordar de suas margens, nem inundar os campos; correndo pacificamente no leito, não deixa de regar a terra e de presentear suas águas aos povos, para maior comodidade pública. Assim, evitando que os pensamentos ambiciosos nos comprometam em trabalhos penosos, tratemos de conduzir nossas águas para bem longe, levados pelo sentimento de bondade; e ainda que em misteres humildes, tenhamos caridade infinita. Tal deve ser a ambição do Cristão que, desprezando a fortuna, ri-se das vãs promessas, e não experimenta revezes, dos quais só me resta dizer algumas palavras, nesta última parte.


Segundo Ponto

A fortuna, grande mentirosa, num ponto pelo menos é sincera, pois não esconde suas artimanhas; ao contrário, exibe-as à luz do dia e, para além das leviandades ordinárias, de tempos em tempos se regozija de espantar o mundo com golpes terríveis e inesperados, como que para relembrar sua força na memória dos homens, com medo de que se esquecessem de suas inconstâncias, maldades e extravagâncias. O que me faz pensar que todas as benesses da fortuna não são favores, mas traições; que ela só nos oferece para nos manejar, e que os bens que dela recebemos não são regalos, mas armadilhas com que nos presenteamos para eternamente ficar entre suas mãos, sujeitos às viravoltas daninhas de seu poder duro e malicioso.

Esta verdade, estabelecida sobre muitas experiências convincentes, deveria desenganar os ambiciosos em face dos bens da terra, mas, ao contrário, é justamente o que os obceca. Em vez de irem ao encontro de um bem sólido e eterno, sobre o qual não domina o acaso, e de desprezar por isso a fortuna sempre cambiante, a inconstância os persuade, fazendo-os dedicarem-se de todo a ela, para no mesmo passo perdê-la. Escutai o que se diz dum hábil e manhoso político. A fortuna eleva-o bem alto, e nesta elevação menospreza as almas mesquinhas que o cercam, e que se repastam nos seus títulos e exibições de grandeza. Acredita ele que apóia sua família sobre fundamentos certos, encargos consideráveis e riquezas imensas, que sustentarão eternamente a fortuna de sua casa. Ele pensa que está assegurado contra toda sorte de investida. Ó cego e imprevidente! Comporta-se como se estes magníficos apoios, com que busca proteger o poder da fortuna, não tirassem a força dele mesmo!

Já se falou demais da fortuna, nesta cátedra da verdade. Escuta, homem sábio, homem previdente, que estende para tantos séculos vindouros as precauções da prudência: é o próprio Deus que te vai falar e confundir teus pensamentos vãos, pela boca do profeta Ezequiel: “Eis (a Assíria), é um cedro do Líbano, de magníficas ramagens, com espessa ramagem e elevada estatura, cujo cimo se alteia em meio às nuvens. As águas fizeram-no crescer; o abismo fê-lo altear-se, dirigindo suas águas para onde ele estava plantado, e enviando seus regatos a todas as árvores da região. Dessa forma dominava ele todas as árvores dos campos; seus galhos se alongavam, sua ramagem se desenvolvia, graças à abundância das águas que o tinham feito crescer. Em seus galhos se aninhavam todas as aves do céu. Sob seus ramos davam cria todos os animais dos campos à sua sombra descansava toda espécie de gente! Era belo por sua grandeza, pela extensão de seus galhos, porque suas raízes mergulhavam nas águas abundantes.”

Eis aí uma grande fortuna, um século não vê muitas parecidas com essa; mas vede sua fisionomia e decadência: porque ele foi tão orgulhoso de seu porte, e ergueu o seu cimo até as nuvens, e o seu coração se ensoberbeceu devido à sua altitude, entreguei-o nas mãos de um poderoso das nações, que o tratará como merece a sua malignidade, e o destruirá”; “Os que repousavam a sua sombra, retirar-se-ão”, de medo de serem esmagados sob as ruínas. Ele sofrerá uma queda terrível, e o contemplarão estendido por sobre a montanha, fardo inútil da terra: Se durante a vida era ele mesmo seu próprio sustento, morrerá em meio a desejos insaciados, legando aos filhos menores negócios escusos, que arruinarão a família; ou Deus ferirá seu filho único, e o produto de seu trabalho passará para mãos estranhas; ou Deus dar-lhe-á como sucessor um dissipador que, vendo-se num átimo possuidor de muitos bens, cujo acúmulo não lhe custou nenhum gemido, gozará com os suores vãos dum homem insensato, que enriquecerá outro; quando advir a terceira geração, a má administração e as dívidas haverão de consumir toda a herança. “Em todos os vales, romper-se-ão os ramos desta árvore imponente”: quero dizer, as terras e os senhorios provinciais que acumulara, com tanto denodo e trabalho, serão partilhados por várias mãos; e os que testemunharem essa viravolta dirão, dando de ombros e vendo com admiração os restos da fortuna corroída: Era para isso a grandeza que o mundo apreciava?

É esta a árvore imponente cuja sombra cobria a face da terra? Só resta agora um tronco inútil. É este o rio impetuoso que haveria de inundar a face da terra? Só vejo um pouco de escuma.

Ó homem, que pensas tu fazer, e por que trabalhas em vão? – Mas eu saberei como seguir e aproveitar o exemplo dos outros: estudarei os percalços da política e de sua condução, e aí então levarei o remédio. – Precaução insensata! Também estes não se valeram dos exemplos dos que os precederam? Ó homem, não te enganes: o futuro encerra acontecimentos inauditos, e a fortuna humana sofre perdas e fugas por tantos orifícios, que queda impossível detê-las. Represas a água por um lado, mas ela penetra pelo outro, fervendo por debaixo da terra. - Contudo, gozarei do fruto do meu trabalho. - Há! Por uns dez anos, no máximo! - Mas tenho em mente minha posteridade e meu renome. - Talvez tua posteridade não a goze. - Talvez sim. - E tantos suores, e trabalhos, e crimes, e injustiças, sem jamais arrancar à fortuna, a quem te devotas, senão um mísero talvez! Tenha em mente que nada há de seguro para ti, nem mesmo um túmulo para nele gravar teus títulos de soberbo, as únicas testemunhas da grandeza abatida: a avareza ou a negligência dos herdeiros talvez os recusem à tua memória, pois que mal pensarão em ti anos depois de tua morte! Certas são as penas da rapina, a vingança eterna das concussões e da ambição infinita. Ó dignos restolhos da grandeza! Ó belos escolhos da fortuna; ó loucura, ó ilusão, eis a estranha cegueira dos filhos dos homens! Cristãos, meditai nessas coisas; Cristãos, seja quem for, se acreditais vos apoiar nesta terra, valei-vos deste pensamento para encontrar a solidez e a consistência. Sim, o homem deve ter um apoio, mas não se podem amesquinhar os desejos a horizontes tão estreitos como os desta vida; antes, deve inculcar-se a eternidade. Com efeito, o homem cuida, dentro do possível, para que o fruto de seu trabalho não tenha fim; ele não pode viver para sempre, mas deseja que sua obra subsista para sempre: esta obra é a fortuna, de que cuida, dentro do possível, para que os séculos vindouros a vejam como ele a engendrou. Na alma humana, existe um desejo ávido por eternidade; caso o homem saiba aplicá-lo, está salvo. Mas ele erra na hora de aplicá-lo e naquilo que ama: se ama os bens perecíveis, nisto medita a eternidade; assim, esforça-se em buscar apoios de todos os lados para este edifício caduco, apoios também eles tão caducos, que o edifício parece vacilar. Ó homem, desengana-te: se amas a eternidade, busca-a em si mesma, não acredites que possas aplicar a sua consistência inquebrantável nesta água passageira, nesta areia movediça [que é a vida presente]. Ó eternidade, estás só em Deus; melhor, ó eternidade, és o próprio Deus! É aí que vou buscar meu apoio, meu estabelecimento, minha fortuna, meu repouso certo, nesta e noutra vida. Ámen.

Tradução: Permanência

Nenhum comentário: