segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

VENI VENI EMMANUEL


NUVEM E RAIZ

A nuvem sempre passa e constantemente se transforma. A raiz, ao contrário, busca a fixação.
Ser nuvem ou ser raiz? Como nos situamos considerando esse paradoxo? Sou como raiz, me aprofundando nas minhas convicções, ou sou como nuvem, constantemente em mudança.
Penso, nem só nuvem, nem só raiz, mas nuvem e raiz. Raiz, quando as tempestades passageiras, com suas nuvens carregadas se aproximarem, trazendo toda sorte de violentas e radicais transformações, desafiando nossas certezas, tombando as velas que nos conduzem a um destino bem programado, destruindo o que existe de sólido e duradouro..., ser como raiz, prender-se a terra, fixar-se, aprofundar-se cada vez mais quando a ameaça estiver próxima, quando a força do vento nos empurrar para o abismo, quando ceder é servir de munição contra si mesmo e contra o próximo. Ser nuvem, transformar-se, nascer de novo, viver uma nova vida, desapegar-se, livrar-se das correntes do mundo, ser leve, imperceptível, inatingível, flutuar por sobre as descabidas exigências, desvincular-se do mal, entregar-se aos ventos do Senhor. Assim, nuvem e raiz, tanto nuvem quanto raiz, tão extremamente opostos, mas ao mesmo tempo, feitos, agora, dependentes.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

INTERIORIDADE




POR SÃO BOAVENTURA

"A alma humana distraída pelas preocupações da vida, não entra em si mesma pela
memória. Obscurecida pelos fantasmas da imaginação, não se recolhe em si mesma
por meio da inteligência. Seduzida pelas paixões, não volta mais a si mesma pelo
desejo da doçura interior e da alegria espiritual."


"A nossa alma, caída nas coisas sensíveis, não teria podido reerguer-se perfeitamente
para contemplar-se a si mesma e admirar em si mesma a Verdade eterna, se a
própria Verdade, tomando forma humana em Cristo, não se houvesse tornado a
escada que repara a antiga escada quebrada pelo pecado de Adão."

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

SERMÃO SOBRE AMBIÇÃO


Jacques-Benigne Bossuet

“Jesus, sabendo que o povo viria arrebatá-lo, para o fazerem rei, tornou a retirar-se, ele só, para a montanha”. (Jo, 6, 15)

Reconheço Jesus Cristo nesta fuga generosa, que fê-lo buscar no deserto o asilo contra as honras que lhe preparavam. Quem acabava de se encher de opróbrios, devia evitar as grandezas humanas; a única exaltação que meu Salvador conhecia era aquela que o elevou na cruz; assim como se ofereceu a si ao decidirem o suplício, fugira, conforme seu espírito, ao lhe destinarem o trono.

A fuga súbita e inesperada de Jesus Cristo para a montanha deserta, onde queria se esconder tão complemente que, nota o evangelista, não havia ninguém em sua companhia, permite-nos vislumbrar a extraordinária pressão que sente; como fosse ele todo-poderoso, nada temendo por si mesmo, havemos de concluir, com certeza absoluta, Senhores, que é para nos admoestar.

Realmente, Cristãos, quando ele se agitou, diz Santo Agostinho, foi de indignação contra os pecados; quando se perturbou, afirma o mesmo Padre, foi de comoção pelos males; assim, quando temeu e fugiu, foi para admoestar dos perigos. Na sua presciência, ele vê em quantos perigos extremados nos arrisca o amor das grandezas: por isso, fugia diante deles para obrigar-nos a temê-los; demonstrando nesta fuga as terríveis tentações com que ameaçam as grandes fortunas, ensina-nos definitivamente que repreender a ambição é o dever essencial ao cristão. Não é empresa de pouca monta pregar tal verdade à corte, e devemos mais que nunca pedir a graça do Espírito Santo, pela intercessão da Santa Virgem: Ave.

O desejo de combater a ambição, que é a alma daqueles que a seguem, é como desertar a corte; e o empalidecer os presentes da fortuna, dos quais os príncipes são os dispensadores, é como rebaixar a majestade.

Mas os soberanos piedosos desejam apagar toda sua glória na presença daquela de Deus; e em vez de se ofenderem deste modo com a falsa diminuição de seu poder, tornam-se venerandíssimos, pois as gentes só os rebaixam, como bem sabem, se os comparam a Deus. Não tenhamos medo de publicar ferozmente na corte mais gloriosa do mundo que ela é incapaz de fazer qualquer coisa digna da estima dum cristão; desiludamos, se pudermos, os homens deste apego furioso ao que denominam fortuna; por isso, façamos duas coisas: façamos falar o Evangelho contra a fortuna, façamos falar a fortuna contra si mesma; o Evangelho nos desvelará suas ilusões, e ela por si revelará suas inconstâncias. Ou antes, vejamos um e outra na história do Filho de Deus. Enquanto acorriam para ele os povos, prometendo-lhe nada menos que um trono, ele desprezou de tal modo esta grandeza vã, que se desonrou a si e abateu seu triunfo com a companhia de tristes homens e miseráveis. Contudo, calcando aos pés a magnificência de seu esplendor, ele se quer exemplo da inconstância dos negócios humanos; no espaço de três dias, viu-se a fúria popular pregar na cruz aquele que o favor público julgara digno do trono. Daí, devemos aprender que a fortuna nada é; não somente quando tira, mas também quando dá, não somente quando muda, mas também quando fica, ela é sempre desprezível. Já começo, por favor, e vos peço, meus Senhores, de bem me escutar.


Primeiro Ponto

Neste primeiro ponto, quero demonstrar que a fortuna nos jugula, ao mesmo tempo em que nos é liberal. Poderia expor seus desenganos à plena luz, provando como de costume que ela nunca cumpre o prometido; mas demonstrar que não dá sequer o que finge dar é algo ainda mais forte. Seu regalo mais caro, mais precioso e mais raro é o poder. É o encanto dos ambiciosos, do qual são zelosos ao extremo, não importando quão diminuta seja a parte que lhes caiba.

Vejamos se ela verdadeiramente confere tal poder, ou se não passa dum nome altivo pelo qual embaça os olhos doentes. Para tanto, é preciso saber o poder que nos cabe, e de que poder temos necessidade, durante esta vida. Mas como se admira deveras a alma humana neste exame, tratemos de conduzi-lo pela via direita, através da doutrina de Santo Agostinho (Livro XIII, Sobre a Trindade).

Este grande homem expõe aqui uma verdade importante, de que a felicidade requer duas condições: poder o que se quer, e querer o que se deve. Assim deve ser, pois se não podeis o que quereis, vossa vontade não ficará satisfeita; também, se não quereis o que deveis, vossa vontade não será regrada; uma e outra impedem a bem-aventurança, pois a vontade descontente é pobre, e a vontade desregrada é doente, o que exclui necessariamente a felicidade, que é a ordem perfeita da natureza, e sobretudo a afluência universal do bem. Por isso, é igualmente necessário desejar o que se deve e poder executar o que se quer.

Acrescentemos, se quiserdes, o mais importante de tudo: a primeira vontade nos embaraça durante a execução, a segunda leva o mal consigo desde o princípio.

Quando não podeis o que quereis, é uma causa externa o que vos impediu; quando não quereis o que deveis, a decepção acontece infalivelmente por causa de vossa depravação: enquanto o primeiro não passa de infelicidade, o segundo é sempre falta; mas só porque é falta, invisível a seus olhos, que é incomparavelmente uma grande infelicidade? Assim, ninguém pode negar, sem passar por louco, que a vontade regrada é um bem mais necessário à felicidade do que um imenso poder.

É por isso, Cristãos, que me não espanto muito do desregramento das afeições e da corrupção dos julgamentos. Abandonamos a regra, diz Santo Agostinho, e suspiramos pelo poder.

Cegos, que empreendemos nós? A felicidade possui duas metades, mas cremos possuí-la inteira, não obstante façamos separação violenta das duas partes. Ainda rejeitamos a mais necessária, e a que escolhemos, porque separada daquela companhia, não nos torna felizes, mas aumenta o peso de nossa miséria. De que serve o poder para uma vontade desregrada que, desejando mal, torna-se ainda pior ao exercê-lo? Não dizíamos, no último domingo, que o grande crédito dos pecadores é uma praga que Deus envia a eles? Por quê? Porque, Cristãos, juntar o desejo ruim à sua execução é jogar veneno numa chaga já mortífera, é acrescentar ao que já era muito. Não é como incendiar o humor maligno cujo veneno corroía-nos as entranhas? Reconhece o Filho de Deus que Pilatos recebeu de cima um imenso poder sobre sua divina pessoa: se fosse regrada a vontade deste homem, poder-se-ia regozijar empregando tal poder para castigar a injustiça e a calúnia, ou pelo menos para livrar a inocência. Mas como a prudência covarde de conservar seu posto havia-o corrompido, tal poder serviu apenas para firmar seu pensamento no crime de deicídio. Por isso, é o cúmulo da cegueira desejar um poder que se voltará contra nós mesmos, que matará a alegria e será funesto à virtude, antes de a vontade estar bem ordenada.

Nosso imenso Deus, Senhores, nos dita outro proceder: quer ele conduzir-nos por vias retas, e não por precipícios. Eis porque ensina a seus servos a prática de querer o bem, e não desejar muito poder; a regrar os desejos, antes de buscar satisfazê-los; a buscar a felicidade por uma vontade bem ordenada, antes de consumi-la pelo poder absoluto.

Mas já é tempo, Cristãos, para que apliquemos mais particularmente essa doutrina de Santo Agostinho. Que pedis vós, ó mortais? Que Deus vos dê muito poder? Respondo eu com o Salvador: Não sabeis o que pedis. Vede bem onde estais; vede a mortalidade que vos consuma, contemplai a figura do mundo que passa.

Em meio a tanta fragilidade, sobre o que sustentais esta grande idéia de poder? Certamente, um título tão imponente deve se apoiar sobre algo: que encontrais sobre a terra que tenha força e dignidade o bastante para sustentar o título de “poder”? Abri os olhos, e penetrai a carapaça: sequer o maior poder do mundo consegue mais do que tirar a vida de um homem; é necessário então um tão grande esforço para matar um mortal, para lhe antecipar nalguns momentos o curso da vida que, por si só, se precipita? Não acrediteis, Cristãos, que alguém encontre o poder onde reine a mortalidade. Assim ordenou, acrescenta Santo Agostinho, a sábia providência: cabe aos homens mortais a observância da justiça; dar-se-lhes-á o poder na morada da imortalidade.

Que exigis de nós ainda? Se desejarmos o necessário na vida presente, poderemos tudo o que quisermos na vida futura.

Regremos a vontade pelo amor da justiça: no tempo propício, Deus nos coroará com a comunhão de seu poder. Se dedicarmos o momento da vida presente à correção dos costumes, dará ele a eternidade inteira para contentar os desejos.

Creio que agora vedes, Senhores, que sorte de poder devemos almejar durante esta vida: poder para regrar os costumes, para moderar as paixões, para nos corrigir segundo Deus; poder de nós contra nós mesmos. Ó poder pouco invejado! E todavia o verdadeiro. As gentes combatem nosso poder de duas formas: ou impedindo-nos de levar adiante as empresas, ou turbando-nos o direito que temos de levá-las adiante; esta última é a verdadeira servidão, pois se ataca a autoridade do comando. Vejamos os exemplos de um e outro dentro da mesma casa.

José era escravo em casa de Putifar, e a esposa deste senhor do Egito era a senhora desta casa. Aquele, durante o jugo da servidão, não era mestre de suas ações; e esta, tiranizada pelas paixões, não era mestre de suas vontades. Vede até onde a levou o amor infame. Ah!, sem dúvida, a menos que tivesse uma cara de madeira, teria ela vergonha de tal baixeza, mas a paixão furiosa lhe arrastava para baixo, como a um escravo.

Chama o jovem, confessa tua fraqueza, rebaixa-te diante dele, torna-te ridícula. Poderia seu mais cruel inimigo aconselhar algo pior?

Controla-a a paixão. Quem não vê, nesta mulher, que sua própria escravidão atou-lhe laços fortíssimos?

Cem tiranos de tal sorte cativam a vontade, e sequer suspiramos! Regozijamos quando nos ligam as mãos, e sem pena arrastamos esses ferros invisíveis em que estão acorrentados os corações!

Protestamos contra a violência, quando se encadeiam os ministros, os membros que executam; não suspiramos quando se cativa a rainha, a razão e a vontade que comandam!

Desperta, escravo miserável, e reconhece esta verdade: se há grande poder no executar os desejos, há um maior e mais verdadeiro no reinar sobre as vontades.

Quem soubera gozar da doçura deste império, pouco se dará, Cristãos, do crédito e do poder que a fortuna possibilita. E eis aqui o motivo: não existe obstáculo maior ao comando de si que o possuir autoridade sobre os outros.

Com efeito, em nós há certa malignidade que espalhou nos corações o princípio de todos os vícios. Estão escondidos e guardados em centenas de recantos tortuosos, esperando a ocasião de levantar a cabeça. Tirar-lhes o poder é a melhor maneira de reprimi-los. Compreendera bem Santo Agostinho que, para curar a vontade, é preciso reprimir seu poder: Mas, os vícios escondidos seriam por isso menos viciosos? É a consecução que fá-los corruptos? Por acaso, deixar o veneno guardado no fundo do coração é curar a vontade? Eis o segredo: entregamo-nos a vontades impossíveis, a planos sempre frustros, tendo do crime somente a malícia. A malícia frustrada, por isso, começa a causar anojo; sua impotência leva-nos a querer e repulsar os seus favores; deste modo, toma-se mais facilmente o partido da moderação dos desejos. Primeiramente, fazemo-lo por necessidade; mas enfim, como o constrangimento é importuno, combatemo-lo seriamente e de boa-fé, bendizendo seu poderio ínfimo – eis a primeira providência em direção à cura.

Pelo contrário, quem não sabe que quanto mais independente se torna uma pessoa, mais os vícios são indomáveis? Somos crianças que precisam dum tutor severo, ou a dificuldade ou o temor. Se não erigimos barreiras, as inclinações corruptas começam a se manifestar e aumentar, oprimindo a liberdade sob o jugo da licenciosidade desenfreada. Ah!, vemos demais disso todos os dias.

Assim vede, Senhores, quanto a fortuna é enganosa, porque, em vez de conferir o poder, tira-nos até a Liberdade.

Não é por acaso, Senhores, que o Filho de Deus ensina-nos a temer os grandes efeitos; o poder é princípio ordinário de extravio: exercendo-o nos outros, freqüentemente perdemos a nós mesmos; enfim, o poder é semelhante ao vinho perfumado, que embriaga até os mais sóbrios. O que souber refrear a ambição será mestre de suas vontades, e acreditar-se-á suficientemente poderoso, à condição que possa regrar os desejos, e se desengane dos negócios humanos, para não mensurar a felicidade pela elevação de sua fortuna.

Escutemos, Cristãos, o que nos opõem os ambiciosos. É forçoso, dizem eles, distinguir-se: permanecer no usual é sinal de fraqueza, os gênios extraordinários sempre se desgarram da tropa, e conduzem o destino. Os exemplos dos que avançam parecem reprovar aos demais o pouco mérito, e é o desejo de distinguir-se que leva a ambição aos maiores excessos. Poderia eu combater, com muitos argumentos, a idéia de distinção. Poder-vos-ia representar este século como confuso, e afirmar que tudo está trocado, e que há de vir o dia derradeiro, no final dos séculos, para apartar os bons dos maus; e que a ambição cristã se deve inspirar neste discernimento claro e eterno. Poderia acrescentar ainda que é vão o esforço de se distinguir nesta terra, onde a morte logo vêm-nos arrancar dos lugares eminentes, abismando-nos a todos naquele lugar comum à natureza, o nada; desta forma, os mais fracos, rindo de vossa pompa fugaz e de vosso discernimento imaginário, dirão junto com o Profeta: ó homem poderoso e soberbo, que pensais que, por causa da grandeza, estais isento do jogo, eis aí vós ferido como nós, vós que sois semelhante a nós.

Mas sem me prender a tais argumentos, limitar-me-ei a perguntar a essas almas ambiciosas por que caminhos pretendem se distinguir. O do vício é vergonhoso; o da virtude, longo. De ordinário, a virtude não é muito ardilosa para conquistar o favor dos homens; e o vício, sempre preparado para a obra, é mais ativo, mais instante, mais pronto que a virtude, que não se desvia das regras, que só caminha a passos contados, que só progride com medida. Desta feita, estareis entediados de tamanha lentidão; a pouco e pouco, vossa virtude fraquejará, e após ela abandonará aquela regularidade primitiva, acomodando-se aos humores do mundo. Ah!, como seria sábio se renunciásseis duma vez por todas a ambição! Talvez ainda ela vos causasse alguma pequena aflição, mas sempre a compraríeis pelo preço justo, sendo-vos mais fácil suportá-la agora, que quando vos abandonáveis às delícias das honrarias e dignidades. Vivei contentes do que sois, e sobretudo que o desejo de obrar o bem não vos faça almejar uma condição mais subida.

Eis o incentivo ordinário dos ambiciosos: imploram sempre por platéia, erigem-se como reformadores contra os abusos, tornam-se severos censores de todos quantos vêem ocupar lugares eminentes. Para eles, sempre são belos os planos que meditam! Quantos conselhos sábios para o Estado! Quantos sentimentos nobres para a Igreja! Quantos regulamentos santos para a diocese! Em meio a tais desejos caritativos e pensamentos cristãos, dedicam-se ao amor do mundo, absorvendo insensivelmente o espírito do século; e finalmente, ao atingirem a meta, vão esperar pelas oportunidades, que marcham a passos de chumbo, e que enfim nunca chegam. Assim fenecem todos os bons desejos, evaporam como um sonho os excelsos pensamentos.

Em conseqüência, Cristãos, sem suspirar nem arder por um poder mais elevado, diligenciemos a dar boa conta do poder que Deus nos confia. Um rio, para fazer o bem, não precisa transbordar de suas margens, nem inundar os campos; correndo pacificamente no leito, não deixa de regar a terra e de presentear suas águas aos povos, para maior comodidade pública. Assim, evitando que os pensamentos ambiciosos nos comprometam em trabalhos penosos, tratemos de conduzir nossas águas para bem longe, levados pelo sentimento de bondade; e ainda que em misteres humildes, tenhamos caridade infinita. Tal deve ser a ambição do Cristão que, desprezando a fortuna, ri-se das vãs promessas, e não experimenta revezes, dos quais só me resta dizer algumas palavras, nesta última parte.


Segundo Ponto

A fortuna, grande mentirosa, num ponto pelo menos é sincera, pois não esconde suas artimanhas; ao contrário, exibe-as à luz do dia e, para além das leviandades ordinárias, de tempos em tempos se regozija de espantar o mundo com golpes terríveis e inesperados, como que para relembrar sua força na memória dos homens, com medo de que se esquecessem de suas inconstâncias, maldades e extravagâncias. O que me faz pensar que todas as benesses da fortuna não são favores, mas traições; que ela só nos oferece para nos manejar, e que os bens que dela recebemos não são regalos, mas armadilhas com que nos presenteamos para eternamente ficar entre suas mãos, sujeitos às viravoltas daninhas de seu poder duro e malicioso.

Esta verdade, estabelecida sobre muitas experiências convincentes, deveria desenganar os ambiciosos em face dos bens da terra, mas, ao contrário, é justamente o que os obceca. Em vez de irem ao encontro de um bem sólido e eterno, sobre o qual não domina o acaso, e de desprezar por isso a fortuna sempre cambiante, a inconstância os persuade, fazendo-os dedicarem-se de todo a ela, para no mesmo passo perdê-la. Escutai o que se diz dum hábil e manhoso político. A fortuna eleva-o bem alto, e nesta elevação menospreza as almas mesquinhas que o cercam, e que se repastam nos seus títulos e exibições de grandeza. Acredita ele que apóia sua família sobre fundamentos certos, encargos consideráveis e riquezas imensas, que sustentarão eternamente a fortuna de sua casa. Ele pensa que está assegurado contra toda sorte de investida. Ó cego e imprevidente! Comporta-se como se estes magníficos apoios, com que busca proteger o poder da fortuna, não tirassem a força dele mesmo!

Já se falou demais da fortuna, nesta cátedra da verdade. Escuta, homem sábio, homem previdente, que estende para tantos séculos vindouros as precauções da prudência: é o próprio Deus que te vai falar e confundir teus pensamentos vãos, pela boca do profeta Ezequiel: “Eis (a Assíria), é um cedro do Líbano, de magníficas ramagens, com espessa ramagem e elevada estatura, cujo cimo se alteia em meio às nuvens. As águas fizeram-no crescer; o abismo fê-lo altear-se, dirigindo suas águas para onde ele estava plantado, e enviando seus regatos a todas as árvores da região. Dessa forma dominava ele todas as árvores dos campos; seus galhos se alongavam, sua ramagem se desenvolvia, graças à abundância das águas que o tinham feito crescer. Em seus galhos se aninhavam todas as aves do céu. Sob seus ramos davam cria todos os animais dos campos à sua sombra descansava toda espécie de gente! Era belo por sua grandeza, pela extensão de seus galhos, porque suas raízes mergulhavam nas águas abundantes.”

Eis aí uma grande fortuna, um século não vê muitas parecidas com essa; mas vede sua fisionomia e decadência: porque ele foi tão orgulhoso de seu porte, e ergueu o seu cimo até as nuvens, e o seu coração se ensoberbeceu devido à sua altitude, entreguei-o nas mãos de um poderoso das nações, que o tratará como merece a sua malignidade, e o destruirá”; “Os que repousavam a sua sombra, retirar-se-ão”, de medo de serem esmagados sob as ruínas. Ele sofrerá uma queda terrível, e o contemplarão estendido por sobre a montanha, fardo inútil da terra: Se durante a vida era ele mesmo seu próprio sustento, morrerá em meio a desejos insaciados, legando aos filhos menores negócios escusos, que arruinarão a família; ou Deus ferirá seu filho único, e o produto de seu trabalho passará para mãos estranhas; ou Deus dar-lhe-á como sucessor um dissipador que, vendo-se num átimo possuidor de muitos bens, cujo acúmulo não lhe custou nenhum gemido, gozará com os suores vãos dum homem insensato, que enriquecerá outro; quando advir a terceira geração, a má administração e as dívidas haverão de consumir toda a herança. “Em todos os vales, romper-se-ão os ramos desta árvore imponente”: quero dizer, as terras e os senhorios provinciais que acumulara, com tanto denodo e trabalho, serão partilhados por várias mãos; e os que testemunharem essa viravolta dirão, dando de ombros e vendo com admiração os restos da fortuna corroída: Era para isso a grandeza que o mundo apreciava?

É esta a árvore imponente cuja sombra cobria a face da terra? Só resta agora um tronco inútil. É este o rio impetuoso que haveria de inundar a face da terra? Só vejo um pouco de escuma.

Ó homem, que pensas tu fazer, e por que trabalhas em vão? – Mas eu saberei como seguir e aproveitar o exemplo dos outros: estudarei os percalços da política e de sua condução, e aí então levarei o remédio. – Precaução insensata! Também estes não se valeram dos exemplos dos que os precederam? Ó homem, não te enganes: o futuro encerra acontecimentos inauditos, e a fortuna humana sofre perdas e fugas por tantos orifícios, que queda impossível detê-las. Represas a água por um lado, mas ela penetra pelo outro, fervendo por debaixo da terra. - Contudo, gozarei do fruto do meu trabalho. - Há! Por uns dez anos, no máximo! - Mas tenho em mente minha posteridade e meu renome. - Talvez tua posteridade não a goze. - Talvez sim. - E tantos suores, e trabalhos, e crimes, e injustiças, sem jamais arrancar à fortuna, a quem te devotas, senão um mísero talvez! Tenha em mente que nada há de seguro para ti, nem mesmo um túmulo para nele gravar teus títulos de soberbo, as únicas testemunhas da grandeza abatida: a avareza ou a negligência dos herdeiros talvez os recusem à tua memória, pois que mal pensarão em ti anos depois de tua morte! Certas são as penas da rapina, a vingança eterna das concussões e da ambição infinita. Ó dignos restolhos da grandeza! Ó belos escolhos da fortuna; ó loucura, ó ilusão, eis a estranha cegueira dos filhos dos homens! Cristãos, meditai nessas coisas; Cristãos, seja quem for, se acreditais vos apoiar nesta terra, valei-vos deste pensamento para encontrar a solidez e a consistência. Sim, o homem deve ter um apoio, mas não se podem amesquinhar os desejos a horizontes tão estreitos como os desta vida; antes, deve inculcar-se a eternidade. Com efeito, o homem cuida, dentro do possível, para que o fruto de seu trabalho não tenha fim; ele não pode viver para sempre, mas deseja que sua obra subsista para sempre: esta obra é a fortuna, de que cuida, dentro do possível, para que os séculos vindouros a vejam como ele a engendrou. Na alma humana, existe um desejo ávido por eternidade; caso o homem saiba aplicá-lo, está salvo. Mas ele erra na hora de aplicá-lo e naquilo que ama: se ama os bens perecíveis, nisto medita a eternidade; assim, esforça-se em buscar apoios de todos os lados para este edifício caduco, apoios também eles tão caducos, que o edifício parece vacilar. Ó homem, desengana-te: se amas a eternidade, busca-a em si mesma, não acredites que possas aplicar a sua consistência inquebrantável nesta água passageira, nesta areia movediça [que é a vida presente]. Ó eternidade, estás só em Deus; melhor, ó eternidade, és o próprio Deus! É aí que vou buscar meu apoio, meu estabelecimento, minha fortuna, meu repouso certo, nesta e noutra vida. Ámen.

Tradução: Permanência

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAMINHANDO...

Como tudo muda após a percepção do que é verdadeiramente vital... Tornam-se desnecessários todos os esforços despendidos sistematicamente em busca do nosso auto-engrandecimento. Essas conquistas que alimentam nossa vaidade e nos "engrandecem", nos empurram com violência para um afastamento completo do que na realidade deveríamos buscar. O mundo nos apresenta a sua trajetória de sucesso, que é, completamente oposta a trajetória de sucesso de nossas almas. Quanto mais perseguimos o trajeto apresentado pelo mundo, mais nos distanciamos do trajeto apresentado por Nosso Senhor para nossas vidas. Os dois caminhos não se cruzam, não existem adaptações entre um e outro, não existem atalhos. Ou servimos o mundo e buscamos satisfazer nossas vaidades, ou renunciamos a nós mesmos e seguimos a Cristo.
O mergulho do homem em busca da satisfação própria, resulta, quando bem executado, num vazio entre o nada e a morte. De tão envaidecido, de tão orgulhoso com suas próprias conquistas, nada mais poderá lhe satisfazer, e mesmo que haja algo que ainda que desperte a sua ambição, nessa busca continua, encontrará, na sequência, a morte. ´
Renunciando, renunciando a si mesmo. Esse caminho ensinado pelo próprio Jesus, atualmente, tem sido evitado pelos seus pretensos seguidores. Pretendem seguir o Mestre, porém, por outro caminho. O caminho apresentado pelo mundo lhes seduz, assim, tentam adapta-lo ao caminho verdadeiro. Triste sina...
O caminho da renuncia a si mesmo, o caminho do Senhor, o melhor trajeto, o caminho da salvação, o caminho da liberdade, o caminho da vitória, esse caminho passa bem distante da rodovia ofertada pelo mundo, e a chegada, não é o nada nem a morte, mais sim a VIDA.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O SOLDADO E O SANTO



R.-Th. Calmel O.P.


Nós sabemos bem distinguir, e não confundimos de modo algum, o heroísmo dos santos e o do soldado. (...) Sim, nós distinguimos sem dificuldade os dois heroísmos e jamais identificamos o grito do herói tombado por uma “pátria carnal” com o cântico do santo que expira consumido pela caridade divina. Sabemos perfeitamente que as últimas palavras de Joana, agonizante, exprimem, acima de tudo, o heroísmo da santidade, e suas palavras só puderam ser aquelas porque, na sua alma, o heroísmo do chefe guerreiro estava iluminado, transformado pelo heroísmo da “Pucelle”, “filha de Deus”.

Sempre ensinamos as distinções irredutíveis entre a natureza e a graça, mas não seremos nós que as transformaremos em oposições; e, por isso, depois de termos discorrido brevemente sobre o heroísmo dos santos, queremos agora exaltar o heroísmo do soldado.

Pertencem a duas ordens distintas, é certo, mas uma ordem pode penetrar a outra, resplandecer através da outra, como a chama ardente através de um cristal. Fazemos questão, uma vez que falamos do heroísmo dos santos, lembrar o heroísmo guerreiro que só parecerá desprezível aos corações covardes, ou aos intelectuais cerebrinos, tornados abomináveis em suas cogitações egoísticas e vazias. Sem o heroísmo do soldado, a sociedade dos homens não terá recursos para discernir praticamente, concretamente que sua instituição visa mais alto do que à produção e ao consumo... Sem o heroísmo do soldado a sociedade entra em putrefação, e dentro dela as almas vivas estão a cada momento ameaçadas de asfixia. Sem o heroísmo do soldado, a sociedade, fechada sobre si mesma, torna-se semelhante, ora a uma usina colossal de portas aferrolhadas, ora a um circo gigantesco, ameaçado de desmoronar-se entre as chamas de um incêndio implacável.

Não considero aqui as possibilidades e as vias pelas quais o soldado se degrada em mercenário [ou em puro técnico, com diria Bernanos]. Bem sabemos que essa degradação é possível. Também não me preocupa aqui a distinção entre o heroísmo da “guerra sem ódios” e o fanatismo demoníaco de um militarismo imperialista. A distinção se impõe. Mas o que quero assinalar, o que desejo indicar é que uma Cidade que despreza o soldado perde o senso de honra, torna-se indigna do homem, e não sabe mais, na prática, que o estabelecimento na terra não é o seu bem supremo. Pelo fato de estar a vida do soldado ligada de perto à vida da alma, e à vida sobrenatural, compreende-se que a sociedade moderna, infestada de materialismo, tenha pelo soldado uma sólida aversão. Ouçamos o que diz Bernanos: “O Estado Moderno, simples agente de transmissão entre a finança e a indústria, tem razão de farejar no exército uma outra Igreja, quase tão perigosa e quase tão incompreensível. Não detêm ambas, embora desigualmente, o segredo de formar os homens, sim, de formar os homens que um dia farão tudo dobrar-se diante deles pela única força do espírito, já que o herói não cede o passo senão diante do santo? Por isso, o Estado que prudentemente classifica o santo entre os alienados, obrigado a servir-se do herói em tempos de guerra, trata de só utilizar-se dele com medida, e com o mínimo de risco. A sociedade moderna sabe muito bem que a simples idéia de sacrifício, introduzida sem retoques em laboriosa moral de solidariedade, estouraria como uma bomba” — Bernanos “La Grande Peur des Bien-Pensants”.

Tradução de parte do artigo publicado em “Itinéraires”, janeiro de 1969

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

AS DUAS VINDAS DO SENHOR

Do Comentário sobre o evangelho de Mateus por São Pascácio Radberto (séc. IX), monge beneditino:

É preciso termos sempre em consideração uma dupla vinda de Cristo: uma, quando Ele vier e nós tivermos de prestar contas de tudo o que tivermos feito; a outra, quotidiana, quando Ele visita sem cessar a nossa consciência e vem a nós a fim de nos encontrar prontos por ocasião da sua vinda definitiva.

Com efeito, para que me serve conhecer o dia do juízo, se estou consciente de tantos pecados? Saber que o Senhor vem, se Ele não vier primeiro ao meu coração, se não entrar no meu espírito, se Cristo não viver e não falar em mim?

Então sim, é bom que Cristo venha se, antes que tudo, Ele vive em mim e eu nele. Para mim, é como se a segunda vinda se tivesse já realizado, uma vez que o desaparecimento do mundo já ocorreu em mim, porque de certa forma posso dizer: "O mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6,14).

Refleti também sobre esta palavra de Jesus: "Muitos virão em meu nome" (Mt 24,5). Só o Anticristo se apoderará deste nome, ainda que isso seja para nos enganar... Em nenhuma passagem da Escritura encontrareis que o Senhor tenha declarado: "Eu sou Cristo". Porque lhe bastava mostrar que o era, pelos seus ensinamentos e pelos seus milagres, uma vez que o Pai agia com Ele. O ensino da sua palavra e o seu poder gritavam: "Eu sou Cristo", com mais força do que milhares de vozes teriam gritado.

Portanto, não sei se podereis achar que Ele o tenha dito em palavras, mas mostrou-o "cumprindo as obras do Pai" (Jo 5,36) e ministrando um ensino impregnado de piedade filial. Os falsos messias, que são disso desprovidos, só podem usar os seus discursos para suportar as suas pretensões enganadoras
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INICIANDO OS TRABALHOS

Inicio hoje os trabalhos nesse blog, que foi criado com a melhor das intenções, objetivando inicialmente a participação e o conhecimento por parte de interessados dessa maravilhosa fase de minha vida : A CONVERSÃO.
Compartilharei aqui, preciosas palavras e ensinamentos que fortalecem e consolidam minhas convicções. Espero, nesse sentido, contribuir para que os corações possam encontrar a verdadeira satisfação.
Nem tudo está perdido, Deus continua agindo. Seu exército vem sendo formado por resgatados das mãos do príncipe deste mundo...,alistem-se. A VERDADE não foi, nem nunca será superada.